15.5.09


Eu, etiqueta"Em minha calça está grudado um nomeque não é meu de batismo ou de cartório,um nome... estranho.Meu blusão traz lembrete de bebidaque jamais pus na boca, nesta vida.Em minha camisola, a marca de cigarroque não fumo, até hoje não fumei.Minhas meias falam de produtoQue nunca experimenteiMas são comunicados a meus pés.Meu ténis é proclama coloridode alguma coisa não provadapor este provador de longa idade.Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,minha gravata e cinto e escova e pente,meu copo, minha xícara,minha toalha de banho e sabonete,meu isso, meu aquilo,desde a cabeça ao bico dos sapatos,são mensagens,letras falantes,gritos visuais,ordens de uso, abuso, reincidência,costume, hábito, premência,indispensabilidade,e fazem de mim homem — anúncio itinerante,escravo da matéria anunciada.Estou, estou na moda.É doce estar na moda, ainda que a modaseja negar minha identidade,trocá-la por mil, açambarcandotodas as marcas registadas,todos os logotipos do mercado.Com que inocência demito-me de sereu que antes era e me sabiatão diverso dos outros, tão mim-mesmo,ser pensante, sentinte e solidáriocom outros seres diversos e conscientesDa sua humana, invencível condição.Agora sou anúncio,Ora vulgar ora bizarro,em língua nacional ou em qualquer língua(qualquer, principalmente).E nisto me comprazo, tiro glóriade minha anulação.Não sou — vê lá — anúncio contratado.Eu é que mimosamente pagopara anunciar, para venderem bares festas praias pérgulas piscinas,e bem à vista exibo esta etiquetaglobal no corpo que desistede ser veste e sandália de uma essênciatão viva, independente,que moda ou suborno algum a compromete.Onde terei jogado forameu gosto e capacidade de escolher,minhas idiossincrasias tão pessoais,tão minhas que no rosto se espelhavam,e cada gesto, cada olhar,cada vinco da rouparesumia uma estética?Hoje sou costurado, sou tecido,sou gravado de forma universal,saio da estamparia, não de casa,da vitrina me tiram, recolocam,objeto pulsante mas objetoque se oferece como signo de outrosobjetos estáticos, tarifados.Por me ostentar assim, tão orgulhosode ser não eu, mas artigo industrial,peço que meu nome retifiquem.Já não me convém o título de homem.Meu nome novo é coisa.Eu sou a coisa, coisamente."Carlos Drummond de Andrade

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Eu sou Lúcia Martinelli

PROFESSORA LUCIA MARTINELLI

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